Sempre tive um pouco de dificuldade para compreender a diferença entreShiva e Shakti e, se ela existe realmente. Essa dificuldade foi crescendo à medida que eu ia percebendo que todos nós somos “Um” (Shiva).
Acredito que a esta altura vocês já tenham percebido a minha incompreensão, ou melhor, o meu dilema: Se somos “Um” como podemos ser diferentes? Essa era a questão, que acredito, para alguns de vocês leitores, relevante.
Sou devoto da mãe Divina (Durga) e, como tal, canto constantemente o seumantra : Om Shri Durgaya namah.
Um belo dia, nas minhas práticas matinais, estava fazendo a repetição do mantra (Japa Mala), quando de repente surgiu à minha frente a forma da Mãe, luminosa com seus oito braços e montada no Leão. Fiquei muito emocionado. Ela estava de frente e olhava diretamente nos meus olhos. Vi a paisagem em volta, o Leão, todas as armas que Ela carrega em suas mãos, seu belo rosto e seus olhos profundos que me olhavam fixamente com muita ternura. Fiquei extasiado e perdi a noção do tempo.
Quando consegui recobrar a consciência, voltei a perceber o lugar onde estava e o que estivera fazendo até aquele momento; me dei conta da hora e consegui perceber que se não me apresasse, iria acabar chegando atrasado ao trabalho, mas, ainda assim, lembrei dos dizeres de umUpanhisad:
“Eu te saúdo Ó Mãe,
Aquela que dispersa o medo,
Repele as dificuldades e e´
A essência da compaixão”.
Fui trabalhar, e o dia correu tranqüilo como normalmente ocorre na nossa cidadezinha. À saída, Savitri, uma colega de trabalho, me convidou para assistir à palestra de um grande mestre que tinha acabado de chegar de uma cidade vizinha com a sua “entourage”. Era um mestre importante, e certamente nós deveríamos ouvi-lo, principalmente eu, segundo ela, que tinha a mente inquieta e indagadora.
Fizemos um pequeno lanche e, embora ainda cedo, nos dirigimos para o local da palestra porque Savitri queria arranjar um bom lugar, de preferência perto do mestre para poder captar melhor seus ensinamentos e sua energia.
Chegamos ao templo e Savitri se apressou a ir bem para frente para arranjar um bom lugar. Preferi ficar um pouco mais distante em um lugar em que podia perceber bem a movimentação das pessoas sem ser incomodado. Sentei, procurei ficar quieto, fechei os olhos e esperei.
Comecei a perceber um movimento maior de pessoas, gente que chegava, tirava suas sandálias, falava com as outras e se acomodava. Apareceu um homem que começou a colocar ordem na pequena multidão que se formava, colocou-os sentados em fila, deixou um corredor aberto entre elas para que o mestre pudesse passar e chegar ao lugar que estava reservado para ele. Alguma coisa começou a chamar a minha atenção. Desviei o olhar um pouco para esquerda e vi uma mulher com um sari bonito, cabelos longos arrumados em trança que iam até a cintura e, apesar do falatório e da agitação das pessoas para conseguirem um lugar, ela se mantinha calma com um olhar doce e sempre uma palavra de carinho para os que se aproximavam.
Percebi que toda aquela organização tinha sido feita por ela, desde o lugar onde o mestre deveria sentar para que pudesse ter uma visão clara e total de todos os presentes, às guirlandas de flores, o incenso, a água servida num copo de prata que demonstrava bem o carinho e o respeito que ela dava ao visitante.
Aquele homem mantinha os olhos fixos nela como que procurando adivinhar os seus pensamentos; num determinado momento, vi nos olhos dela um quê de preocupação e percebi uma movimentação extra em sua volta, o número de pessoas crescia, e as oferendas, que são sempre oferecidas ao mestre (flores e frutas) e depois de abençoadas por ele distribuídas a todos os presentes (Prasad), eram poucas para a quantidade de pessoas que continuavam a chegar.
Vi quando o homem se virou para o lado dela, se empertigou, calçou as suas sandálias e, sem proferir nenhuma palavra, saiu. Percebi toda a sua movimentação e me espantei com a sua atitude, pois, naquela hora, já não se encontravam mais abertas as casas que vendiam frutas. Alguns minutos depois, chega ele carregado de sacolas de frutas das mais diversas variedades, as entregou a Ela e sem dizer uma palavra se retirou.
Fiquei intrigado!
Ouvi certo burburinho na entrada, ele virou para Ela, que estava um pouco afastada e a avisou da chegada do visitante. Ela se encaminhou para porta, fez Namaskaram (saudação) e o convidou a entrar. O mestre olhou a ante-sala, teceu alguns comentários em voz baixa e pausada como só os mestres sabem fazê-lo. Ela o encaminhou para o salão principal onde todas as pessoas o esperavam. O homem saltou à frente deles e foi abrindo caminho entre os participantes até o local onde o mestre deveria ficar. Voltou, rearrumou as pessoas e, foi para o final do salão de onde tinha uma visão geral de tudo o que acontecia.
Continuei quieto no meu canto, agora já mais interessado na movimentação Ele/Ela do que propriamente na palestra.
O convidado iniciou a sua fala, não antes de seus discípulos entoarem cânticos de Bhajans e fazerem uma pomposa apresentação.
O visitante iniciou a sua palestra, e as coisas que eram ditas me soavam comuns e sem grandes atrativos. Algumas palavras em sânscrito que eu não entendia bem e alguns conceitos filosóficos básicos.
Procurei o homem pela sala com o meu olhar. Estava no mesmo lugar, com a mesma fisionomia. Não consegui perceber se ele estava gostando ou não, logo após, o vi olhando para Ela, fez Namaskaram (saudação) e sumiu como chegou, sem dizer nada e sem se despedir de ninguém.
Ela continuava ali, no seu canto, em pé escutando.
Ao acabar a palestra as pessoas se retiraram e o convidado veio conversar com ela e agradecer a hospitalidade. Depois de algum tempo percebi que aquele que veio ensinar começava a escutar mais e mais o que Ela lhe falava. Apurei o ouvido, pois não dava para escutar muito bem o que era falado; mas podia ver o olhar doce e a voz melodiosa dEla dissertando sobre o Absoluto e o conceito de Shiva/Shakti. Em dado momento me pareceu que Ela falava para mim, seus olhos brilhavam, e seu rosto estava iluminado.
Fiquei com a atenção presa àquela conversa e, à medida que me concentrava mais e mais, ora via a fisionomia dEla ora, via o sorriso enigmático daquele homem que saiu porta afora sem dizer nada.
Não sei quanto tempo permaneci ali. Em dado momento, senti tocarem no meu ombro e chamarem o meu nome, Krishna, Krishna. Era Savitri, já cansada de esperar veio me chamar pedindo desculpas por me incomodar, mas, como estava ficando tarde e ela não queria voltar sozinha para casa, criou coragem para me tirar do que ela chamou transe profundo...
Calçamos nossas sandálias e saímos caminhando, a Lua cheia iluminava o nosso caminho. Permanecemos quase todo o percurso em silêncio, ora apreciando a paisagem e a beleza da Lua, ora com nossos próprios pensamentos a respeito do que tínhamos visto e ouvido.
Deixei Savitri em casa e continuei andando até a minha casa que fica um pouco mais abaixo, já na descida para o rio. Parei um pouco no portão e fiquei admirando a beleza da noite, a Lua, as estrelas e o reflexo nas águas do rio que pareciam estar paradas. Uma brisa fresca começou a soprar e achei que era um convite para me sentar à beira do rio e ficar apreciando toda essa paisagem. Fiz o que meu coração mandava, me sentei um pouco, olhei para o céu, virei a cabeça para o lado e apreciei as pequenas luzinhas das casas que ainda permaneciam acessas na nossa vila, escutei o barulho das águas do rio em sua constante movimentação.
Fechei os olhos e comecei a cantar o mantra “Om Shri Durgaya namah”. Fiquei em silêncio. Algum tempo depois veio à minha mente tudo o que se passou comigo naquela noite, principalmente, as atitudes daquele homem e daquela mulher que, sem saber por que, acabou sendo o alvo de toda a minha atenção. Senti, repentinamente, que toda aquela história, na verdade, era uma maneira de Durga Mataji me transmitir conhecimento, mas ainda não conseguia ver com clareza o âmago da questão.
Neste momento, surgiu a figura de Ardhanareshwara (ShivaShakti) e clareou a minha mente, foi um “vrtti vyapti” (um tipo de movimento da mente).
Percebi que Shiva, que na figura está relacionado ao direito, representa as características masculinas da nossa personalidade, como pensamento lógico e racional e aspectos tais como assertividade, agressividade, competitividade, etc.
A Shakti, relacionada ao lado esquerdo da figura, representa as características femininas da nossa personalidade, como pensamentos criativos e intuitivos, qualidades como emotividade, passividade e aspectos receptivos, conservadores, holísticos, etc.
Compreendi, também, a importância dos nossos Rsis (sábios) e a tradição deste conhecimento que vem sendo passado de geração em geração, (Guru shisya param para) sempre da mesma maneira, sem necessidade de qualquer modificação, através de textos, de imagens e de sons e que estão à disposição de todos nós.
Fiz uma reverência à Durga Mataji, agradeci a possibilidade que tinha me proporcionado de dissipar da minha mente mais esta dúvida e voltei para casa feliz, embora cansado.
No outro dia, levantei cedinho e fui trabalhar. No caminho, encontrei Savitri e fomos conversando caminho afora, mas isso, já é outra história.